Não à Precarização!
A grande farsa chamada MERITOCRACIA
É tendência comum supor que, em relação a resultados esperados, se deva priorizar aquelas pessoas que demonstram talento e esforço pessoal na solução de problemas ou na busca de se sobressair diante da competitividade, e escolher essas pessoas para assumirem posições criticas e importantes de decisão ou responsabilidade na execução de tarefas, sejam particulares, sejam públicas. Dito dessa forma pode parecer natural e justo que sistemas meritocráticos assumam prevalência e preponderância sobre outras formas de escolha e definição de prioridades ou oportunidades em empresas, governos e entidades sociais. No entanto é cada vez mais frequente a percepção de que os sistemas meritocráticos se mostram injustos, discriminatórios, segregacionistas e que criam sérios problemas burocráticos, sociais e políticos nas sociedades em que são aplicados, tanto que nenhuma sociedade atual possui um sistema totalmente meritocrático em aplicação, apesar da meritocracia estar presente em maior ou menor grau em praticamente todas elas.
Pois bem, então onde reside o problema com a meritocracia, e porque ela se mostra tão dúbia e é tão fortemente contestadas por tantas pessoas?
Bem, me aventuro a dizer que em meus pensamentos sobre essa questão levantei algumas hipóteses e desenvolvi algumas idéias sobre essa questão e vou buscar apresentar algo dessas idéias nesse trabalho.
Creio ser também oportuno afirmar que este texto não possui a formalização de um texto acadêmico, mesmo porque eu não tenho formação que possa sustentar tal ambição, nem tão pouco participei ou realizei estudos sobre o tema de forma consistente e metódica. Sendo portanto que este texto deve ser encarado mais como uma crônica do que como um artigo que pretenda demonstrar algo de forma acadêmica.
Pois bem, então poderíamos perguntar, afinal qual o problema com a meritocracia?
Para responder a isso acho que precisamos primeiramente falar um pouco sobre as palavras, seus significados e os conceitos derivados delas. Calma não se preocupe que não pretendo aqui entrar em questões retóricas sobre etimologia ou semântica, mas é de suma importância que entendamos não apenas o significado das palavras meritocracia e mérito, mas também qual dos vários significados que estas palavras possuem que adquirem maior relevância no imaginário das pessoas quando se referem a elas.
Pelo dicionário temos que:
Meritocracia: (do latim mereo, merecer, obter) é a forma de governo baseado no mérito. As posições hierárquicas são conquistadas, em tese, com base no merecimento, e há uma predominância de valores associados à educação e à competência.
E logo em decorrência:
Mérito: s.m. Aquilo que faz com que uma pessoa seja digna de elogio, de recompensa; merecimento. Qualidade apreciável de uma coisa, de uma pessoa. O que caracteriza a ação de merecer honras ou castigos; merecimento: condenado pelos seus méritos; prêmio recebido pelos seus méritos.
Pois bem, se na meritocracia as pessoas devem ser escolhidas por seus méritos, e os méritos representam o que é digno de elogios de recompensa de honras, segue dai que aqueles que sejam meritórios, pela própria definição, estão acima e a frente das demais pessoas, do comum, do vulgar. Afinal não haveria sentido em se falar em méritos se quem possui esses méritos se mostra comum e vulgar quando comparado à todos os outros. Pode parecer, a princípio, que estou apenas dizendo o óbvio, porém nem sempre o óbvio é percebido de forma tão direta como esperada e nem sempre o que esta diante de nossos olhos é captado em todo o seu significado, como pretendo deixar mais claro logo a diante.
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Agora se impõem também uma outra questão, o que seria considerado algo meritório? Se temos o sujeito que merece ser reconhecido como meritório então precisamos também ter o ato que possa ser considerado mérito, aquilo que ao ser realizado por uma pessoa o torna merecedor de ser reconhecido como digno de mérito.
Então vamos pensar sobre cada uma dessas questões e tentar chegar a um entendimento mais completo sobre o que se esconde por trás de uma simples palavra.
Todos nós buscamos heróis, exemplos, referencias em quem olhar e que nos sirvam de meta, de estímulo, de alvo a ser atingido, de uma forma ou de outra todos buscam ídolos para quem olhar. Claro que, se levarmos em conta o amadurecimento esperado para uma pessoa, o mais lógico seria que essa necessidade de idealização fosse se acalmando com o tempo, não no sentido de perdermos a capacidade de reconhecimento quanto aos ícones, mas no sentido de podermos julgar com mais clareza e bom senso e nós mesmos irmos nos tornando nosso próprio referencial, e os referenciais externos passarem a se tornar apenas lembranças do que nos motiva e nos impulsiona para a frente, e entendermos que reconhecimentos e méritos possuem seu lugar, mas não se prestam a ser o único alvo a ser atingido e sim se tornarem apenas marcos que nos orientam em nossa própria busca pessoal.
Porém não é isso que acontece de fato em parcelas significativas da população, o significado que predomina acaba sendo apenas e tão somente o sentido direto entre mérito e recompensas, elogios e honras. Isso provoca nas pessoas e na sociedade uma estranha inversão de valores, onde quem persegue o mérito não persegue a ação meritória, mas sim as benesses que advém de alguém ser considerado meritório, e aqui nasce o primeiro dos problemas da meritocracia.
Vejamos como isso acontece. Imaginemos duas situações semelhantes, porém com personagens distintos atuando em cada uma delas. Vamos supor que existam duas casas em chamas e dentro de cada uma delas ha uma pessoa precisando de socorro para escapar das chamas, no primeiro caso temos uma equipe de bombeiros completa atendendo o chamado, a equipe começa a jogar água sobre as chamas e um dos bombeiros veste uma roupa de proteção, coloca uma máscara com oxigênio nas costas, se amarra em uma corda e entra na casa totalmente equipado para enfrentar as chamas e se valendo de seu treinamento, e assim consegue resgatar a pessoa que se encontrava lá dentro. Na outra situação temos apenas uma pessoa comum, que passava pelo local no momento em que as chamas tomam conta da casa, os bombeiros não aparecem e as chamas se alastram, ele não possui treinamento nem equipamentos, mas não suporta a ideia de deixar a pessoa morrer sozinha sem nada fazer, então pega um pedaço de pano encharca com água enrola no rosto e, tendo apenas essa proteção entra na casa conseguindo, mesmo contra todas as chances, resgatar a pessoa das chamas.
Agora vem a pergunta principal, qual das duas pessoas poderíamos dizer realmente que possui méritos pelo feito realizado? Para qual dos dois deveríamos oferecer uma medalha, mostrar nosso reconhecimento, demonstrar honra e até favores pelo feito?
Não precisamos responder realmente essa pergunta, pois cada um de nós sabe internamente para qual das duas pessoas o reconhecimento seria maior e mais legitimo, mas o que realmente muda no caso de um e no caso do outro? A resposta para essa pergunta é o ponto chave para entendermos a falácia da meritocracia. E essa resposta é bem simples, a capacitação.
Muitos entretanto pode argumentar que aquele que possui o verdadeiro mérito seja o Bombeiro, pois ele treinou para isso, se preparou, sabe como lidar com os equipamentos e como agir para melhor garantir a vida e segurança dele e da possível vítima, mas isso é um erro, o fato dele possuir treinamento indica capacitação, não valor de ação. Se fôssemos tomar cada ato que as pessoas realizam em seu dia-a-dia como algo meritório logo não haveria méritos, pois tudo recairia novamente no comum, no banal, e o simples ato de alguém cumprir seu dever já mereceria aplausos e medalhas. Não digo nem que não mereçam, afinal muitos dos deveres cotidianos são por demais pesados para qualquer pessoa não apenas bombeiros, mas médicos, socorristas, enfermeiros, policiais e muitos outros, e justamente para que possam cumprir seu trabalho eles precisam de uma capacitação eficaz e rigorosa.
Mas o que significa estar capacitado? Para se capacitar para algo, a pessoa precisa de dedicação, cuidado, esforço, constância e habilidades, coisas que estão sob sua esfera pessoal, dependem dela mesma em maior ou menor grau. Mas também precisa de bons professores, técnicas, orientação, suporte e assistência, coisas que não pertencem à pessoa nem ao universo de escolhas que elas possam fazer diretamente. Uma pessoa que, por razões que fujam de seu poder de decisão e escolha, acabe em uma escola ou centro de treinamento ineficiente, terá uma capacitação pobre e ineficiente, não importa o quanto se esforce para aproveitar ao máximo aquilo que lhe é ensinado.
Já alguém que possua capacidades acima da média, pode acabar por realizar coisas surpreendentes, mesmo sem ter a capacitação adequada para aquilo, algumas podem até mesmo criar suas próprias capacitações diante de uma situação que assim o exija. Mas isso não é algo que possa ser transmitido de uma pessoa para outra, nem tão pouco ser metrificada e submetida a sistemas de ensino, é algo pessoal, intransferível.
Algo impossível de ser cobrado de qualquer pessoa, exatamente por isso quem possui ou consegue se sobressair dessa forma é tão especial e raro.
Vejam, ser digno de mérito não significa tão somente fazer o que se espera da pessoa, mas fazer além, não apenas fazer o esforço para o qual a pessoa foi preparada ou capacitada a fazer, mas fazer aquilo para o que a pessoa não foi preparada, e mais que isso fazer isso sem esperar pelo retorno que isso poderia trazer.
Vamos imaginar mais um pouco, vamos supor que o prefeito daquela cidade onde ocorreram os incêndios decida oferecer uma medalha para cada um dos dois homens, o cidadão comum e o bombeiro, e sem que nenhum dos dois saibam disso eles são chamados para uma solenidade, então o prefeito chama primeiramente o cidadão comum e lhe oferece a medalha de honra ao mérito pelo seu feito, os abraços se estendem um pouco, vem as fotos e, antes que o prefeito possa ter chance de chamar o bombeiro esse se levanta e reclama em voz alta seu direito de receber também uma medalha. Eu pergunto então, qual seria o valor dessa medalha, diante da população e da sociedade em geral, desse momento em diante?
Então vamos ver o que isso significa na realidade
Mérito não é algo que se possa cobrar, nem é algo que se possa medir por puro esforço na realização das tarefas cotidianas, mérito é algo que se outorga, não que se exige ou se cobra.
Outra característica do mérito é que ele é algo perene, o risco que aquele cidadão da história realizou e a vida que ele salvou nunca irão se apagar enquanto houver algo ou alguém que recorde aquele feito, não importa o que esse mesmo cidadão venha a realizar ou deixar de fazer no futuro, o mérito que ele conquistou é dele de forma perene. Já por outro lado o trabalho do bombeiro devera ser realizado outras vezes se ele quiser continuar sendo bombeiro e para faze-lo ele devera se manter capacitado para isso, pois no momento em que não for mais capaz de faze-lo ele obrigatoriamente não poderá mais ser um bombeiro. O importante no entanto é perceber que para isso, para continuar bombeiro, ele não depende do mérito pessoal, mas da capacitação contínua, e isso são duas coisas totalmente diferentes. A capacidade dele como bombeiro não exige que ele se arrisque a cada momento, ao contrário, busca fazer com que ele se arrisque cada vez menos, melhorando os métodos, os equipamentos e as técnicas, e ninguém irá cobra-lo por não se arriscar além do que é esperado no cumprimento do seu dever e de suas obrigações.
Vamos analisar isso de uma outra maneira, imaginemos um ganhador do prêmio Nobel. Sob qualquer aspectos que vejamos esse ganhador possui méritos para isso, visto que não é qualquer pessoa que consegue se destacar em uma área o suficiente para merecer esse prêmio. Agora imagine a situação dos doadores do prêmio chegando para esse mesmo ganhador, dois anos depois dele ter recebido seu prêmio, e falarem algo mais ou menos assim…”caro senhor, visto que durante esses dois anos que se passaram o senhor não se destacou em nenhuma outra área de pesquisa, mesmo tendo em conta que sua pesquisa anterior foi de enorme importância para toda humanidade, viemos retirar sua premiação, por falta absoluta de novas realizações posteriores”… O que poderia ser dito de tal atitude?
Ou podemos também imaginar uma outra situação, digamos que esse senhor, ganhador do prêmio, padeça de alguma doença degenerativa, que o vá tornando senil, ao ponto dele perder toda a capacidade de realizar novas pesquisas e de continuar seu trabalho, por acaso ele será menos reconhecido por seus feitos anteriores?, por acaso seu nome não passara para a história por aquilo que ele realizou? Mas no entanto ele não estaria apto a assumir nenhum outro cargo efetivo no futuro devido a sua de doença e a perda da capacitação que daí decorre.
Então já temos bem clara a falácia da meritocracia, ao pretender se firmar no mérito ela na verdade se firma na capacitação pura e simples. Porém não é essa noção de capacitação que permeia as idéias das pessoas, mas continua sendo a ideia de mérito verdadeiro e como tal as pessoas acabam, mesmo sem se darem conta de forma plenamente consciente disso, esperando e exigindo o mesmo reconhecimento que se dá para quem possui mérito genuíno, e passam a julgar que apenas um esforço adicional nos estudos, ou o fato de passarem em um exame, já lhes confere o direito de cobrar e exigir esse reconhecimento como méritos próprios, quando o que eles fizeram foi apenas passar por um processo de capacitação para a área em que se aplicaram, e mais, passam também a julgar de forma exclusivista que apenas os esforços dele foram responsáveis por seu progresso e pelos sucessos que atingiram, se esquecendo completamente de toda a enorme cadeia de oportunidades, pessoas, equipamentos, conhecimento acumulado anteriormente e esforço desenvolvidos por outras pessoas para que a estrutura em que ele se capacitou estivesse funcional e preparada para que ele e outros atingissem seus objetivos. Aos olhos dessas pessoas, apenas o esforço pessoal é que conta. porém, de fato, dificilmente essas pessoas terão realizado algo a mais, dificilmente terão verdadeiramente se sobressaído de forma a merecerem um reconhecimento real de mérito além do que todas as outras pessoas também fizeram…
Se fosse somente isso já seria um grande mal, mas isso sozinho não trariam grandes consequências, além de tornar aquelas pessoas mais egoístas e arrogantes. Mas junto com essa cobrança por reconhecimento dos méritos, vem também a noção de perenidade da conquista realizada, vem a noção de que apenas aquele concurso público vencido, apenas aquela prova ou aquele exame superados, apenas aquela etapa atingida já dão direito da pessoa se perpetuar por seus méritos na posição alcançada, e isso implica em abandonar a capacitação como obrigatoriedade para que se cumpram as funções e deveres assumidos.
Quando a pessoa atinge um status em que, ao modo de ver dela mesma, de seus parentes mais próximos, e até do sistema estabelecido, ela possua uma condição de referencia, de direito, de honra e, aos olhos dela mesma, de mérito próprio e pessoal, nada mais natural do que se esperar que esse ego se infle, se eleve até as alturas e crie a realidade que vemos espalhada por todos os lugares em que esse sistema é aplicado.
Esse sentimento é tão forte e tão contagiante, entre aqueles que se rendem a ele, que as pessoas começam a julgar direito seu receberem todo tipo de preferência, ou de reconhecimento, seja na forma de elogios, seja na forma de indicações para cargos, ganhos adicionais e muito mais, passam realmente e se julgarem elite, pessoas diferenciadas e dignas de honra e aclamação. Isso estabelece um circulo vicioso, pois para manter essa ilusão de grandeza é preciso que os valores sejam vistos como vindos exclusivamente da pessoa e não de todo o aparato que a cerca, logo nada mais natural do que crer e afirmar que a razão para que outros não alcancem o lugar que elas alcançaram seja a indolência, a preguiça, a desatenção, a falta de esforço pessoal, e que se desprezem ou minimizem totalmente as demais variáveis, como escola, origem, oportunidades, professores capazes, acesso a informação de qualidade e à estruturas sólidas e todo o resto. E finalmente, se valem dos poucos casos reais de mérito, quando alguém realmente conseguiu se sobressair de forma pessoal, independente de outros fatores, para afirmar e atestar a validade de seus argumentos em prol do esforço pessoal como única explicação real para o posto ou lugar que alcançaram.
A escolha pela capacitação deveria ser algo natural, evidente por si mesmo. Mas para que essa escolha possa realmente dar frutos ela obrigatoriamente deve se separar e se distanciar da ideia de mérito, e de meritocracia.
Não se trata de dizer que ninguém deva ser escolhido por meio de testes ou receber indicações dentro das áreas para as quais se encontre capacitado, ao contrario, significa fazer isso de forma natural, sem a contaminação de fatores morais nem a super valorização das conquistas, apenas e tão somente trabalhar sobre um sistema de reconhecimento factual, onde cada meta alcançada seja reconhecida como uma meta alcançada e nada mais, sem dúvida que aqueles que demonstrarem capacidade acima da média dos demais alcançaram resultados melhores, mas isso sem estardalhaços e sem avaliações morais quanto as pessoas.
Reconhecer que o que se alcança através dos estudos, do esforço, da dedicação, sejam apenas capacitação mas que alcançar mérito real também é possível, mas que esse mérito real não é algo que toda e qualquer pessoa possa alcançar não diminui os feitos de ninguém, ao contrario, os enaltece. Além do mais isso também não tira o fato de podermos receber a outorga por nossos feitos como méritos legítimos, porém vindos de outros lugares, como da família por exemplo. Alguém que se forma depois de muito esforço, especialmente aqueles que chegam lá a custa de muito sacrifício pessoal e familiar, com certeza tem o direito de aceitarem e receberem a outorga desse reconhecimento de mérito da parte de seus familiares, e tem o direito de se orgulharem pelo que fizeram e pelo que atingiram, mas não de pretender levar esse mérito pessoal além dos limites de sua esfera pessoal. Pois para realmente ser correto e verdadeiro ele deve também reconhecer que inúmeros outros atingiram o lugar que ele atingiu, e que a única forma de se manter em atividade é pela capacitação constante. O mérito pessoal alcançado estará sempre presente no seio de sua família e daqueles que compactuam com ele desses feitos, mas isso é algo que pertence à ele e àqueles que lhe são caros, e se trata de uma etapa e não de toda a vida. Pretender cobrar de outros esse reconhecimento é o mesmo que exigir a outorga de uma medalha em uma solenidade, ela pode até chegar, mas não terá valor nenhum.
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Fonte Pragmatismo Político
Postado por Fabiano Couto em Notícias