Grande sambista de São Paulo contou um metrópole em processo de transformação.
No dia 6 de agosto, o sambista Adoniran Barbosa (cujo nome de batismo era João Rubinato) completaria 100 anos de idade. Embora exista toda uma polêmica em torno do ano exato de seu nascimento, são incontestáveis os motivos para se comemorar essa data: seja por sua obra musical, por toda a sua contribuição para o samba de São Paulo (e por extensão, para o samba em geral), por sua atuação no rádio e no cinema, além de inúmeras outras razões. Sem deixar de reconhecer todo esse legado que o compositor nos deixou, vamos aqui nos limitar a recordar um outro lado de Adoniran Barbosa: o de cronista da cidade e do cotidiano dos trabalhadores de sua época.
Contexto de sua obra
“É o progresso
É o progresso
Mudou tudo
Mudou até o clima...”
(Praça da Sé, Adoniran Barbosa)
É verdade que esse lado de cronista não chega a ser uma novidade; tanto que ele já chegara a ser chamado de Noel Rosa de São Paulo (aliás, Noel Rosa é outro sambista que completaria um século de nascimento neste ano de 2010), graças à sua galeria de personagens, típicos das ruas da cidade.
Boa parte dos sambas mais conhecidos de Adoniran datam do começo da década de 1950 (Iracema, Saudosa Maloca e Samba do Arnesto, por exemplo), período de profundas transformações na estrutura do país, que até então era rural em sua maior parte. Transformações essas que incluíam em seu bojo a implantação da indústria pesada no país, a entrada massiva de empresas transnacionais estrangeiras, as migrações para os centros urbanos e o repentino inchaço desses territórios nos anos que se seguiriam.
A partir desse contexto, o samba de Adoniran ganha corpo, resultante de tradições e costumes regionais, próprios daqueles que construíram a cidade – muitos deles oriundos do campo (conforme se pode perceber no próprio sotaque caipira-italianado de suas músicas) – e da nova dinâmica do grande centro que se tornava São Paulo.
Para alguns de seus biógrafos e estudiosos, tais sambas registram bem o movimento dessa realidade, porém, sempre a partir dos que mais sofriam com esse processo. Em outras palavras, o “povão”.
O cronista das contradições
“Não reclama
Pois a chuva só levou a sua cama
Não reclama
‘Guenta a mão’, João
Que amanhã tu ‘levanta’ um barracão muito melhor”
(Guenta mão, João, de Adoniran Barbosa e Hervê Cordovil)
Com isso, não se pode dizer que as músicas de Adoniran chegassem a ter um caráter militante, de transformação da ordem. De qualquer forma, o sambista tinha grande capacidade de captar as contradições do momento em que vivia. Essas contradições aparecem em passagens de alguns sambas que poderíamos até considerar como conformistas. Um exemplo é a música Saudosa Maloca, na qual o compositor narra um despejo de pessoas de uma maloca. Apesar da injustiça da situação, os moradores despejados acabam por se conformar, pois nenhuma força teriam diante do poder da polícia e do proprietário. E, então, a música termina assim:
“E hoje ‘nóis’ ‘pega’ paia/ Nas ‘grama’ dos ‘jardim’/ E pra ‘esquecê’ ‘nóis’ ‘cantêmos’ assim:/ Saudosa maloca/ Maloca querida/ ‘Dindin dondi’ ‘nóis’ ‘ passêmos’ dias ‘feliz’ de nossas ‘vida’”.
Apesar de os moradores terem sido obrigados a abaixar a cabeça, não se esqueceram do absurdo que aconteceu. Por mais que tentassem esquecer, a injustiça era gritante.
Também é possível notar que o samba passa uma certa nostalgia do tempo na maloca, como se fosse uma época boa, sem grandes problemas – sendo que o problema maior já estava presente no fato de as pessoas precisarem morar em uma maloca – embora a narrativa não diga isso, dá a entender (ainda que pudesse não ser essa a intenção do sambista).
Outro exemplo que não podemos deixar de citar é a música Conselho de mulher (em parceria com Oswaldo Molles e João Belarmino dos Santos), cuja letra é a seguinte:
“Pogressio, pogressio.
Eu sempre iscuitei falar, que o pogressio vem do trabaio.
Então amanhã cedo, nóis vai trabalhar.
Quanto tempo nóis perdeu na boemia.
Sambando noite e dia, cortando uma rama sem parar.
Agora iscuitando o conselho da muié.
Amanhã vou trabalhar, se deus quiser – mas deus não quer!”
Como se pode ver, quase tudo nos leva a entender que essa música faz uma defesa da velha máxima, segundo a qual “o progresso individual resulta do próprio esforço” (crença essa muito difundida em nossa sociedade, a serviço dos interesses daqueles que realmente usufruem do trabalho da maioria). E, de fato, a música passaria essa mensagem, não fosse o acréscimo da última frase, o breque do samba: “mas deus não quer”. Porque essa frase, além de conferir humor à música e de mostrar a malandragem do sambista, também acaba por colocar em dúvida tudo aquilo que foi falado antes. Mesmo que não se trate de uma crítica profunda, ao menos consegue mostrar que há alguma coisa errada no discurso anterior – e a própria experiência concreta do trabalhador, que trabalha a vida toda sem ganhar nada, comprova isso.
De trabalhador para trabalhador
“É como dizia a ‘nedota’: muita gente ‘trabaia’... e os ‘otro’ vive”
(fala do personagem Charutinho, de Adoniran, no programa História das Malocas, que foi ao ar de 1955 a 1968, na rádio Record).
A identificação do compositor com as camadas populares é evidente (inclusive no modo de falar, tal e qual as pessoas na rua), mesmo porque, ele próprio fazia parte desse meio e conhecia boa parte dos problemas da cidade a partir de suas andanças.
Esse traço da obra Adoniran pode ser bem ilustrado no seguinte trecho do samba Despejo na favela:
“Pra mim não tem problema
Em qualquer canto ‘me’ arrumo
De qualquer jeito ‘me’ ajeito
Depois, o que eu tenho é tão pouco
Minha mudança é tão pequena
Que cabe no bolso de trás
Mas essa gente aí, hein!
Como é que faz?”
Ou ainda em Torresmo à milanesa (em parceria com Carlinhos Vergueiro):
“O mestre falou
Que hoje não tem vale, não
Ele se esqueceu
Que lá em casa não sou só eu.”
Não seria exagero dizer que as músicas de Adoniran não só mereceriam ser conhecidas por todos os trabalhadores e trabalhadoras brasileiros, como certamente teriam muito a lhes dizer quanto aos problemas enfrentados por eles até hoje.
No entanto, Adoniran só veio a ser reconhecido como artista já no final de sua vida – e ainda assim, apenas por pequenos círculos intelectuais. Sabe-se, por outro lado, que tal injustiça não ocorreu somente com ele, mas se aplica a todo aquele que se pretenda um artista popular em nossa sociedade.
Em um artigo de 1976, o crítico musical José Ramos Tinhorão já dizia ser crescente a influência dos meios de comunicação sobre os produtos culturais e a dependência desses meios aos interesses de seus proprietários; isso implicaria dizer que aqueles produtos veiculados são necessariamente determinados por esses interesses antipopulares. Portanto, toda a cultura difundida por tais meios possui esse caráter (muito embora, em alguns casos também venham a se apropriar de elementos da cultura popular). No caso de Adoniran, isso também vale para a indústria fonográfica – e de certo pode ser uma pista para compreendermos as causas do isolamento de uma figura de tamanha relevância como ele.
De todo modo, ainda que dentro desses e de outros limites, consideramos que o esforço de se fazer lembrar de figuras como Adoniran consiste em um ato de resistência da cultura de nossa classe, trabalhadora. O que é importante, inclusive, para o resgate dessa identidade coletiva e histórica.
E, para finalizar este artigo, só mesmo com as palavras do próprio Adoniran, que fez de sua obra o que na música Abrigo de vagabundo ele faz com a sua maloca:
“Minha maloca
A mais linda deste mundo
Ofereço aos vagabundos
Que não têm onde dormir”