No início de maio, uma missão decidiu investigar, no Rio de Janeiro, um dos mais velados e complexos problemas dos afrodescendentes no Brasil. A Relatoria do Direito Humano à Educação se incumbiu de decifrar casos de intolerância religiosa contra praticantes de candomblé, umbanda e outras religiões de matriz africana. A proposta é parte da missão “Educação e Racismo no Brasil”, realizada em diversos estados ao longo deste ano. Com apoio da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR) do Rio de Janeiro, a equipe também se propôs a investigar a situação da educação em área de remanescentes de quilombolas.
Segundo os estudiosos, a intolerância contra práticas religiosas afrobrasileiras enfrenta a indiferença social. O problema sofre de notória invisibilidade. Entretanto, por conta principalmente do preconceito por parte de adeptos de religiões neopentecostais (Igreja Universal, Internacional da Graça, entre outras), práticas religiosas chegam a ser quase proibidas em determinadas regiões. O aumento dos praticantes de cultos neopentecostais, e de seus poderes midiático e político, somado à ambiguidade das políticas educacionais seriam as principais causas da intolerância religiosa. Márcio Gualberto, do Coletivo de Entidades Negras do Rio de Janeiro, ironiza o preconceito. “As religiões de matrizes africanas não têm como cultuar o diabo, até porque esta figura não existe em nosso panteão”, diz.
Em janeiro, o Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos da UFF (InEAC-UFF) lançou o dossiê “Intolerância Religiosa no Rio de Janeiro”. O documento analisa conflitos relacionados a diferenças identitárias e étnico-religiosas no Estado, de forma a entender o tratamento dado a essas distinções por parte de instituições públicas. “A intolerância religiosa tem total invisibilidade por parte do Estado e dos próprios movimentos sociais. É a falsa ideia da democracia racial”, afirma Fábio Reis Mota, cientista social do InEAC-UFF.
Entre 2008 e 2009, a CCIR acompanhou 17 casos específicos de registros policiais de intolerância religiosa, registrados no dossiê. Uma das constatações da Comissão foi a dificuldade de a polícia perceber a importância do registro de ocorrência. Muitas vezes, as vítimas são convencidas a não registrar, como se tivessem vivenciado um problema menor. “A polícia chama esse tipo de evento de 'feijoada', algo menos importante”, diz Fábio. Os dados revelam que a maioria das vítimas tem mais do que 21 anos. Entre os autores de crime religioso, a idade mínima cresce para 40 anos, o que talvez revele um grau de intolerância maior entre os mais velhos. A maior parte dos casos ocorre na instituição religiosa ou na casa da vítima.
Outra crítica feita pelos pesquisadores diz respeito ao tratamento midiático. A religiosidade afrobrasileira seria retratada de forma estereotipada, reforçando preconceitos no imaginário social. “A mídia televisiva não tem um tratamento homogêneo para as religiões africanas. Uma parte dela aceita a diversidade religiosa, e podemos ver personagens positivos. Entretanto, esse segmento que tende a tratá-las positivamente costuma fazer das religiões de matriz africana exemplos da exceção, e não da regra”, afirma Joel Zito Araújo, diretor do documentário “A negação do Brasil”. “Em determinados casos, assistimos na pregação de pastores, ou nos comentários nada sutis de apresentadores de TV, uma estereotipização dos praticantes de cultos afros, enfaticamente retratados como cultuadores do demônio, alimentando uma rede de preconceito, ódio e ignorância”, completa.
Guerra santa
Segundo o professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), José Flávio Pessoa, sempre houve essa repressão. Mudou apenas a maneira como se dá. Sacerdotes dos calundus, formas rudimentares de religiosidade existentes até o século XIX, eram perseguidos e assassinados. “Até os anos 1950, a Igreja Católica promovia a perseguição. Nessa época, a polícia ainda entrava nos templos, destruía, sequestrava bens. A partir da década de 1970, as igrejas neopentecostais ganham expressão e promovem uma verdadeira 'guerra santa' contra a religiosidade afrobrasileira. E eles têm formas diversas de pressionar o Estado, como proibindo o sacrifício de animais e cultos barulhentos”, afirma.
A Comissão de Combate à Intolerância Religiosa foi formada em março de 2008, após um incidente na Ilha do Governador. Praticantes de religiões neopentecostais expulsaram casas de umbanda e candomblé do local, destruindo templos. Na ocasião, adeptos das religiões de matriz africana se uniram e organizaram um protesto em frente à Assembleia Legislativa (Alerj). Em seguida, eles formaram a CCIR, com o objetivo principal de combater o preconceito religioso. As duas principais criações da Comissão foram a “Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa” e o “Fórum de Diálogo Inter-religioso”. O grupo tomou como uma de suas principais reivindicações a criação de uma delegacia especializada para repressão ao crime de discriminação étnico-racial-religiosa.
Márcio Gualberto, do Coletivo de Entidades Negras do Rio de Janeiro, conta que, em 2009, uma mulher trajando roupas referentes à sua religião recebeu uma cuspida em Campo Grande, de uma evangélica de igreja neopentecostal. No mesmo ano, uma casa de umbanda foi atacada no Catete por fanáticos religiosos. Segundo ele, o Coletivo estaria planejando para 2011 a Conferência Nacional sobre Liberdade Religiosa, a ser convocada pelo governo federal. “Casos de intolerância são muito maiores do que imaginamos. Os agentes perpetradores são os mais variados e percebemos não só a omissão como, às vezes, o próprio Estado como agente”, acusa.