Ataques aos trabalhadores

MP cria trabalhador de ‘segunda classe’, ataca hora extra e aposentaria

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MP cria trabalhador de ‘segunda classe’, ataca hora extra e aposentaria

Congresso pautou a MP 1045, uma minirreforma com prejuízo a trabalhadores e às fiscalizações do trabalho escravo e vão votar hoje terça, dia 3/8. Caso a MP seja aprovada pelo Congresso, bancários, jornalistas e operadores de telemarketing, entre outros trabalhadores com jornadas reduzidas (ou seja, de menos de 8h por dia) terão redução no valor do pagamento de horas extras

Uma Medida Provisória (MP) repleta de emendas pode cortar direitos trabalhistas, reduzir a renda dos trabalhadores, criar categorias de empregados de “segunda classe” e atrapalhar a fiscalização de escravidão contemporânea caso sua conversão em lei seja aprovada pelo Congresso em votação prevista para esta terça-feira (3) à tarde. Enquanto isso, as atenções do país estão voltadas às polêmicas presidenciais sobre o voto impresso, a volta aos trabalhos da CPI da Covid e as Olimpíadas.

 

Os “jabutis” (como são chamadas as emendas estranhas ao tema principal do projeto, inseridos no relatório final do deputado Christino Áureo (PP-RJ), transformam a MP 1045 em uma minirreforma trabalhista – prejudicial aos empregados.



A Repórter Brasil apurou que muitas das propostas foram costuradas com o relator pelo Poder Executivo, por meio de representantes do então Ministério da Economia, que hoje migraram para o novo Ministério do Trabalho e Previdência.



Editada pelo governo federal no final de abril, a medida autorizou a suspensão de contratos e redução da jornada de trabalho (com redução salarial) como forma de tentar ajudar as empresas em tempos de pandemia do novo coronavírus. Já foi prorrogada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e precisa ser votada pelos deputados federais para ser convertida em lei antes de perder a validade, em 9 de setembro. O relatório está pronto para votação no Congresso e é considerado prioridade pelo Executivo, tanto que entrou na agenda da primeira sessão após o recesso.



Contudo, os “jabutis” inseridos pelos deputados na MP 1045 são rechaçados por sindicatos, auditores fiscais do trabalho, magistrados e pelo Ministério Público do Trabalho, que divulgou na última sexta-feira (30 de julho) um documento assinado por 17 procuradores, entre eles o procurador-geral José de Lima Ramos Pereira, destacando a inconstitucionalidade de diversos pontos do relatório.

 

“As reduções de direitos previstas, como a possibilidade de firmar contratos civis e sem garantias trabalhistas e previdenciárias, podem aumentar muito os riscos de superexploração dos trabalhadores”, afirma o procurador do trabalho e vice-coordenador nacional da área de combate à escravidão do MPT, Italvar Medina, que é um dos signatários do documento.

 

“Há uma busca pela precarização do vínculo [trabalhista]. Vários países tentaram esse caminho e em nenhum lugar significou aumento do emprego e da remuneração das pessoas”, afirma o auditor fiscal do trabalho, Luiz Scienza, presidente do Instituto Trabalho Digno, entidade que reúne auditores dedicados ao estudo e pesquisa do trabalho decente.

 

A Intersindical Central da Classe Trabalhadora e todas as centrais sindicais também repudiam as modificações trazidas no relatório. Os representantes sindicais se reuniram com o relator, mas não conseguiram sensibilizar o deputado, que faz parte da base de Jair Bolsonaro.

 

Procurado, o relator da MP, deputado Christino Áureo, não quis conceder entrevista.

Na justificativa do relatório, ele escreveu que: “a urgência e relevância justificam-se pela necessidade de reação do Poder Público diante da nova onda de contaminações que impediu a retomada completa das atividades econômicas, cenário em que o Novo Programa Emergencial é essencial para a sobrevivência das empresas e dos empregos, assim como para a manutenção da renda dos empregados”.

 

Confira as principais mudanças que podem prejudicar os trabalhadores:

As centrais sindicais denunciam que a criação do Regime Especial de Trabalho Incentivado (Requip), defendida pelo governo, estabelece uma espécie de trabalhador de “segunda classe”, sem contrato de trabalho e, portanto, sem direitos (como férias, FGTS, contribuição previdenciária, entre outros). O Requip é destinado para quem não tem vínculo com a Previdência Social há mais de dois anos, trabalhadores de baixa renda que foram beneficiados com programas federais de transferência de renda e jovens com idade entre 18 e 29 anos.

 

A síntese do Requip é a prestação de serviços ou trabalho eventual associado à formação profissional, com assinatura de um termo de compromisso, mas sem caracterizar relação de trabalho. Os pagamentos ao profissional são chamados de Bônus de Inclusão Produtiva (BIP) e de Bolsa de Incentivo à Qualificação (BIQ).

 

“Esta modalidade de trabalho, Requip, ficará completamente à margem da legislação trabalhista, já que não haverá vínculo empregatício; não haverá salário, mas apenas o pagamento de ‘bônus de inclusão produtiva’ (pago com recursos públicos) e de ‘bolsa de incentivo à qualificação’; não haverá recolhimento previdenciário ou fiscal; não haverá férias, já que trabalhador terá direito apenas a um recesso de 30 dias, parcialmente remunerado; o vale-transporte também será garantido apenas parcialmente”, informa nota da Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente do MPT.

 

“Embora o objetivo ‘social’ do programa seja relevante, trata-se de um programa que promove a exploração da mão de obra, subvertendo o direito ao trabalho assegurado como direito social pela Constituição”, afirma análise do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap).

 

Em abril, quando a MP 1045 foi discutida, o Ministério Público do Trabalho condenou o essa proposta: “Trata-se assim de uma modalidade de trabalho altamente precarizada, que criará uma espécie de ‘trabalhador de segunda classe’”. Em nota, o MPT destacou que não há nenhum mecanismo na MP para evitar que empregados atuais, contratados pelas regras vigentes, sejam substituídos pelos trabalhadores admitidos via Requip.

 

A Confederação Nacional dos Trabalhadores Assalariados e Assalariadas Rurais (Contar) manifestou preocupação com o Requip, pois entende que pode ser um caminho para “legalizar a informalidade” do trabalhador do campo.

 

Redução do pagamento de horas extras

Caso a MP seja aprovada pelo Congresso, bancários, jornalistas e operadores de telemarketing, entre outros trabalhadores com jornadas reduzidas (ou seja, de menos de 8h por dia) terão redução no valor do pagamento de horas extras.

 

O texto do relator prevê uma “extensão da jornada” para 8 horas diárias e determina que o pagamento da hora extra tenha acréscimo somente de 20% — hoje, a legislação trabalhista determina que a hora extra tenha acréscimo de 50% (quando trabalhada de segunda a sábado) e 100% (quando trabalhada domingos ou feriados).

 

“É um absurdo que não deveria acontecer”, afirma a presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro (Contraf), Juvandia Moreira. “Já derrotamos esse assunto em outras tentativas, mas, infelizmente, sempre retorna”, critica. Além de reduzir o pagamento da hora extra, a MP permite que a alteração seja feita por acordo individual, sem a mediação do sindicato que representa a categoria.

 


“A previsão de acordo individual em uma situação dessas vai contra todos os princípios que norteiam o direito do trabalho”, afirma o juiz Valter Pugliese, diretor da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra). Para ele, o empregado não tem como negar o acordo se tiver que negociar diretamente com o patrão, pois a diferença de forças é muito grande. “A negociação do sindicato nessas situações é essencial”, afirma.

 

Os procuradores também apontam que a proposta quer reduzir o caráter de fiscalização e tornar a atividade dos auditores fiscais como uma ação apenas orientativa. “O que pode resultar em estímulo à prática de ilicitudes e incremento de acidentes, mortes e adoecimentos nas relações laborais”, entendem os 17 procuradores que assinam a nota técnica.



“Quanto ao combate ao trabalho escravo e infantil, em particular, traria enormes prejuízos. Primeiramente porque retiraria poderes investigatórios de diversos órgãos, como próprio Ministério Público e a Polícia Federal”, afirma o procurador Medina, do MPT.

 

“Com isso, muitos empregadores vão esperar que um auditor fiscal do trabalho faça uma visita, oriente e, enquanto isso, não cumprem a lei”, afirma Luiz Scienza, presidente do Instituto Trabalho Digno.

 

Julgamento das infrações por comissão com integrantes empresariais

O relatório se vale de outro “jabuti” que sugere alterar o artigo 635 da CLT para que os recursos dos empregadores contra autos de infração passem a ser julgados por uma comissão que pode ter, inclusive, integrantes das empresas infratoras.

 

Para o MPT, isso submete a análise a critérios políticos de conveniência: “Com risco de fragilização da política pública de erradicação do trabalho escravo, pois também se submeteriam a esse procedimento autos de infração que consubstanciam resgates de trabalhadores”.

 

Na prática, caso a MP 1045 seja aprovada, representantes do governo e das empresas vão decidir se os nomes de determinadas empresas farão parte da “lista suja”, o cadastro de empregadores responsabilizados por mão de obra análoga à de escravo, por exemplo. Luiz Scienza, do Instituto Trabalho Digno, explica que essa comissão, se criada, tende a favorecer aqueles que detém o poder econômico e político no Brasil.

 

Isso porque a “lista suja”, por exemplo, é um incentivo às empresas a cumprirem a legislação, pois expõe o nome dos flagrados com escravizados para a sociedade, incluindo os compradores no mercado nacional e internacional e bancos financiadores.

 

É a segunda vez que se tenta criar uma comissão do tipo. A primeira foi no final do governo Michel Temer, em outubro de 2018.

 

Aposentadoria pode demorar mais tempo

Outro ponto destacado pelas centrais sindicais como prejudicial é que o trabalhador que tiver o contrato suspenso deverá contribuir como segurado facultativo (autônomo) para o INSS (Instituto Nacional de Seguridade Social), seguindo as alíquotas estabelecidas para o segurado obrigatório (aqueles que têm carteira assinada). Ou seja, tira a obrigação do patrão de fazer a contribuição.

 

O advogado trabalhista Antonio Megale, da LBS Advogados, destaca que sem o pagamento da contribuição previdenciária, o período de suspensão do contrato não contará como tempo de contribuição para conseguir a aposentadoria — ou seja, o trabalhador terá de esperar mais tempo para ter direito ao benefício.

 

“Isso causará prejuízos ao trabalhador quando for requerer sua aposentadoria”, afirma. “É o empregador que deve pagar a contribuição previdenciária, e não só o trabalhador, em momento de pandemia e dificuldades financeiras, com redução salarial”, entendem as centrais sindicais.

 

Dificuldade de acesso à Justiça gratuita

Rechaçadas pelas centrais sindicais, as alterações de artigos da legislação trabalhista atual que recuperam dispositivos de outras medidas provisórias que já caducaram, como a MP 925 e a MP 927, também estão presentes na proposta. Uma delas altera a gratuidade da Justiça trabalhista.

 

O advogado Megale explica que o relatório da MP passa a exigir que seja feita a comprovação da renda para fins de acesso à justiça gratuita, sendo que atualmente, basta a declaração de insuficiência de recursos.

 

“O trabalhador fica com medo de entrar na justiça mesmo tendo convicção de que teve seu direito violado”, entende Clóvis Roberto Scherer, do Dieese (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos).

 

Inconstitucionalidade dos ‘jabutis’

As centrais sindicais destacam que a inserção de “jabutis” ao texto original de uma Medida Provisória já foi considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, em 2015.

 

A tese é corroborada pelo MPT, que aponta jurisprudência e recomenda que todos os “jabutis” sejam “apreciados em propostas legislativas específicas, que permitiriam amplo debate nas Casas do Congresso Nacional”.

 

A situação lembra a “boiada”, termo usado pelo então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, em reunião ministerial de 22 de abril de 2020, quando sugeriu aproveitar que as atenções da mídia estavam voltadas à pandemia de covid-19 para aprovar uma série de mudanças nas regras do setor. 

Escrito por: Daniel Camargos Repórter Brasil com colaboração de Leonardo Sakamoto.  
Fonte Brasil de Fato
Postado por Gustavo Mesquita em Notícias
Atualizado em: 04 de agosto de 2021

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