Terceirização extermina direitos
Terceirização e neodesenvolvimentismo no Brasil
Na era do neodesenvolvimentismo (2003-2013), sob os governos Lula e Dilma, aumentaram as modalidades flexíveis de contratação laboral no Brasil. Na década de 2000, sob o choque de capitalismo, disseminaram-se novas formas atípicas de contratação salarial como, por exemplo, o contrato por prazo determinado, contrato por prazo parcial, suspensão de contrato; e principalmente, as relações de emprego disfarçada tais como contratação como pessoa jurídica (PJ), cooperativas de contratação de trabalho, trabalho-estágio, autônomos, trabalho em domicílio, teletrabalho e a terceirização. Interessa-nos tratar aqui da terceirização, que se manifesta de múltiplas formas, incluindo, por exemplo, algumas dessas formas de contratação atípicas (subcontratação por meio de agência de emprego, a PJ, o autônomo proletarizado, o trabalho em domicílio e a cooperativa para empresa). Entretanto, a terceirização não se reduz a elas, tendo em vista que abarca todo o processo de externalização de atividades para outras empresas ou pessoas.
A partir da década de 1990, a terceirização se constituiu na principal forma de flexibilização da contratação no Brasil. Desde que passou a ser admitida em atividades-meio de acordo com o Enunciado 363 do TST (Tribunal Superior do Trabalho), a terceirização tornou-se a forma mais evidente de flexibilização da legislação trabalhista. Na década de 1990, as políticas neoliberais promoveram a reestruturação do capitalismo no Brasil, com impactos diruptivos no mundo do trabalho, principalmente com o crescimento abrupto do desemprego aberto nas metrópoles brasileiras. Na década de 2000, com o neodesenvolvimentismo, ocorreu a reorganização do capitalismo brasileiro na base da acumulação flexível. Constituiu-se efetivamente o que denominei de “toyotismo sistêmico” (vide o livro
Deve-se observar ainda que o fenômeno da terceirização tornou-se tão complexo que se estabeleceu a “terceirização da terceirização”, onde a empresa terceirizada sub-contrata parte do processo para outras empresas; e em alguns casos há o processo chamado de “quarteirização”, que refere-se: ora à empresa intermediadora, aquela que se coloca entre a “empresa-mãe” e a empresa terceirizada, ou seja, aquela que gerencia os contratos com as prestadoras de serviços; ora trata de um desdobramento da terceirização, representada pelo momento em que a prestadora de serviços contratada pela “empresa-mãe” repassa para outra empresa, “cooperativa de trabalho” (trabalhadores “autônomos”) ou prestador de serviços individual (Pessoa Jurídica- PJ), as atividades a serem realizadas.
As empresas são motivadas a terceirizar não devido à especialização técnica, busca do crescimento da produtividade, desenvolvimento de produtos com maior valor agregado, ou maior tecnologia; ou ainda devido à especialização dos serviços ou produção, mas sim, visando a otimização dos seus lucros, em especial, através de baixíssimos salários, altas jornadas e pouco ou nenhum investimento em melhoria das condições de trabalho. Por isso, terceirização no Brasil implica desrespeito dos direitos dos trabalhadores, criando, deste modo, uma clivagem no mundo do trabalho formal, com o surgimento da figura do “cidadão de segunda classe”, vivendo com uma espada de Damôcles, à merce dos golpes das empresas, que fecham do dia para a noite, e não pagam as verbas rescisórias aos seus trabalhadores empregados e às altas e extenuantes jornadas de trabalho.
Portanto, as empresas terceirizadas abrigam as populações mais vulneráveis do mercado de trabalho: mulheres, negros, jovens, migrantes e imigrantes. Esse “abrigo” não tem caráter social, mas é justamente porque esses trabalhadores se encontram em situação mais desfavorável, e por falta de opção, submetem-se a esse emprego.); e por outro lado, assume como modo cultural de consumo da força de trabalho no Brasil, a superexploração da força de trabalho, traço ontogenético do ethos capitalismo no Brasil,– articulando o historicamente novo (novas tecnologias e modernos métodos de gestão) e o historicamente arcaico (relações de trabalho espúrias com rebaixamento de salário e espoliação de benefícios trabalhistas).
Portanto, tanto a rede como circuito de transferência de valor da empresa terceira para a grande empresa; quanto a rede como contenção do gasto público, articulam o regime de acumulação flexível com o regime de acumulação por espoliação. Deste modo, temos, por um lado, a predação de direitos dos trabalhadores e benefícios trabalhistas; e por outro lado, a corrupção da coisa pública que prolifera nos contratos de terceirização do setor público no Brasil. No limite, a sociedade em rede, organizada em torno da grande empresa (pública e privada), externaliza suas atividades para empresas e pessoas, aumentando os custos para a sociedade – não apenas devido a espoliação de direitos e benefícios trabalhistas, empobrecendo trabalhadores e reforçando a concentração de renda no País; e com o desvio de dinheiro do fundo público, as fraudes em licitações, evasão fiscal, focos de corrupção, aumento das demandas trabalhistas e previdenciárias, entre outros custos como a tão propagada competitividade, mas com a perda da qualidade de serviços e produtos,
Pouco mais que ¼ do mercado de trabalho formal no Brasil está terceirizado. Segundos dados do DIEESE, os trabalhadores terceirizados no Brasil perfazem hoje cerca de 25,5% do mercado formal de trabalho. Entretanto, deve-se salientar que esse número está subestimado, tendo em vista que, parte considerável dos trabalhadores terceiros estão alocados na informalidade – além disso, não estão contidos os setores da agricultura. Portanto, a mancha da precariedade salarial é imensa.
Os impactos da terceirização sobre o mundo do trabalho são indiscutíveis, demonstrando a péssima qualidade do emprego nas empresas terceiras no Brasil. Por exemplo, no tocante a remuneração salarial, ela é menos 27,1% para os trabalhadores terceirizados. Em relação à jornada de trabalho contratada, os terceirizados realizam uma jornada de 3 horas a mais semanalmente, isso sem considerar as horas extras ou banco de horas realizadas. O tempo de emprego demonstra uma diferença ainda maior entre trabalhadores diretos e terceiros. Enquanto a permanência no trabalho é de 5,8 anos para os trabalhadores diretos, em média, para os terceiros é de 2,6 anos. Desse fato decorre a alta rotatividade dos terceirizados – 44,9% contra 22% dos diretamente contratados. Esse fato tem uma série de conseqüências para o trabalhador terceirizado, que alterna períodos de trabalho e períodos de desemprego, resultando na falta de condições para organizar e planejar sua vida, inclusive para projetos pessoais como formação profissional, mas tem também um rebatimento sobre o FAT (Fundo de Amparo do Trabalhador) uma vez que essa alta rotatividade pressiona para cima os custos com o seguro desemprego. Deste modo, a terceirização não se configura como dano existencial, na medida em que as relações de trabalho acima descritas submetem os empregados a jornadas excessivas de trabalho, causando abalo físico e psicológico, impedindo-o da fruição do direito ao lazer e ao convívio social? (os dados acima são encontrados na pesquisa da CUT/DIEESE publicada em 2011).
Outro argumento comumente difundido é que os trabalhadores terceirizados recebem menos porque possuem menor escolaridade. De fato, os terceiros possuem uma escolaridade menor, mas não é um hiato gigante: 61,1% dos trabalhadores em setores tipicamente terceirizados possuem ensino médio ou formação superior, enquanto entre os trabalhadores dos setores tipicamente contratantes esse percentual é de 75,7%.
Enfim, a expansão invisível da terceirização é apenas a “ponta do iceberg” da reorganização capitalista ocorrida no Brasil na perspectiva da afirmação do capitalismo flexível. Cada vez mais, criticar a terceirização é criticar o capitalismo como modo de organização social. Existe um vínculo orgânico entre terceirização e nova dinâmica do capitalismo global baseada no regime de acumulação flexível. No caso do Brasil, existe, como salientamos acima, a simbiose entre terceirização e superexploração da força de trabalho, traço ontogenético do capitalismo brasileiro. Nesse caso, o conceito de capitalismo significa não apenas modo de produção de mercadorias, mas significa também um ethos particular – no caso do Brasil – de valorização do capital e exploração da força de trabalho. É importante lembrar que o capitalismo brasileiro constituiu-se historicamente como um capitalismo hipertardio, dependente, de extração colonial-escravista e via prussiana, onde historicamente, o moderno se articulou com o arcaico; e o primado da iniciativa privada se impôs sobre a dignidade da pessoa humana e os direitos sociais dos trabalhadores.
Portanto, está inscrito como traço ontogenético do capitalismo brasileiro, o modo oligárquico-patrimonialista de organização da exploração da força de trabalho, com a “Casa Grande” continuando sendo movida insaciavelmente pela busca desenfreada de lucros (o que explica a ânsia da terceirização como estratégia de rebaixamento salarial e espoliação de benefícios trabalhistas). Ao mesmo tempo, a nova etapa histórica do capitalismo flexível, no plano do mercado mundial, reforça – afirma e valida – o traço estrutural do capitalismo brasileiro salientado acima.
Portanto, a terceirização no Brasil não é traço meramente contingencial por conta da lei ou inescrupulosidade de juristas liberais ou maus capitalistas. Ela é um traço orgânico do capitalismo brasileiro. A terceirização é um modo de reafirmar a forma de ser de entificação do capitalismo brasileiro baseado na superexploração da força de trabalho (exploração da força de trabalho que articula intensificação do trabalho, alongamento da jornada laboral e rebaixamento salarial). Ao mesmo tempo, a vigência do capitalismo flexível e a constituição da “nova precariedade salarial” contribuiu para a re-afirmação do modo de entificação do capitalismo no Brasil – hipertardio, dependente, extração escravista-colonial de via prussiana – aprofundando, deste modo, os traços históricos da miséria do trabalho no Brasil no interior do próprio núcleo da modernidade salarial. Portanto, a terceirização não é a afirmação do arcaico nas relações de trabalho no Brasil mas sim a reposição histórica da dialética entre o moderno e o arcaico, característica ontogenética do desenvolvimento do capitalismo no Brasil.
A persistência do Estado neoliberal no Brasil sob os governos neodesenvolvimentistas contribui não apenas para a expansão da terceirização como modo de organização empresarial, mas também para seu reconhecimento jurídico-institucional pela alta corte constitucional do País. As condições de combate contra a terceirização são bastante adversas: por um lado, temos uma sociedade política hegemonizada pelos interesses empresariais; e por outro lado, uma sociedade civil manipulada midiáticamente e hegemonizada pelos princípios liberais da livre iniciativa, mantendo-se, deste modo, apática e alienada do desmonte da cidadania salarial decorrente da legalização da terceirização como estratégia de flexibilização das relações de trabalho no Brasil.
Foi a hegemonia liberal, de extração oligárquico-politica, presente na institucionalidade juridico-politica brasileira, que contribuiu para que se aceitasse a terceirização como principio da livre iniciativa. Reduzir o combate à terceirização a discussão sobre atividade-fim e atividade-meio significa permanecer no campo do inimigo de classe, tendo em vista que, a discussão sobre atividade-fim e atividade-meio não se trata de procedimento técnico, mas sim, afirmação politica. Deste modo, o problema é quem tem a prerrogativa de definir o que é, ou não, “atividade-meio” e “atividade-fim”, num contexto de complexificação da externalização da atividade econômica. As fronteiras do que ‘pode ou não pode’ estão indefinidas. O que será considerado estratégico dependerá do observador, de seus objetivos, que estão para além da disputa sob os termos jurídicos. No caso brasileiro, com a fragilidade da organização dos trabalhadores no local de trabalho, as empresas têm grande poder para definir o processo de produção e de trabalho. No fundo, o debate sobre “atividade-meio” versus “atividade-fim” reflete uma disputa política acerca dos direitos trabalhistas e sociais. Na verdade, a controvérsia tem relação com o disposto no Enunciado 331 do TST, que, cedendo aos interesses da grande empresa capitalista, num cenário de ofensiva neoliberal, legitimou a terceirização para inúmeras atividades “tipicamente terceirizáveis” e abriu a brecha para atividades de especialização favorecendo, deste modo, a redução de custos salariais e de benefícios conferidos pelas conquistas sindicais do segmento mais estruturado., de tendência à equalização descendente da taxa diferencial de exploração.
A tendência de equalização descendente da taxa diferencial de exploração leva ao rebaixamento civilizatório. Para um país capitalista como o Brasil, isto assume dimensões de perversidade social, tendo em vista o cenário histórico de desigualdades social no País. Enfim, na era da terceirização, aprofunda-se, por um lado, a crise do Direito do Trabalho e o declínio da instituição Justiça do Trabalho e das cortes constitucionais (como o TST). Caso o STF libere a terceirização como almeja o empresariado, a Justiça do Trabalho receberá um golpe histórico. A expansão das relações de trabalho flexíveis como ocorreu na década de 2000, torna mais opaca a luta de classes com a invisibilização das personas do capital. O disfarce da relação de emprego oculta a subalternidade estrutural do trabalho ao capital e reforça a concorrência entre os próprios trabalhadores. Portanto, a terceirização não se restringe a ser um mecanismo de rebaixamento salarial, mas é um mecanismo de ocultação ideológica, descaracterizando o conflito antagônico capital versus trabalho.
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O livro mais recente de Giovanni Alves, <span style="font-family:; font-size: 12pt;" roman";color:black;mso-fareast-language:pt-br"="" "times="" new="" times="">é doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia e professor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com bolsa-produtividade em pesquisa e coordenador da Rede de Estudos do Trabalho (RET), do Projeto Tela Crítica e outros núcleos de pesquisa reunidos em seu site giovannialves.org. É autor de vários livros e artigos sobre o tema trabalho e sociabilidade, entre os quais O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo (Boitempo Editorial, 2000) e Trabalho e subjetividade: O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório (Boitempo Editorial, 2011). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.
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