Retrocesso
Por que não devemos aplicar a reforma trabalhista?
Toda interpretação/ aplicação de um conjunto de regras deve observar o princípio que o institui, sob pena de perda de sua própria razão de ser. Pois bem, no caso do Direito do Trabalho, o princípio que institui o conjunto de regras trabalhistas é a proteção, que não decorre de circunstâncias pessoais de quem trabalha, nem da maldade ou bondade do empregador. A proteção se justifica historicamente como uma forma de tentar manter a promessa da modernidade, de que todos são destinatários da norma jurídica. Ou seja, todos, inclusive os trabalhadores, tem direito a uma vida minimamente boa, a exercer sua liberdade, a ter sua dignidade respeitada, etc.
O problema é que em uma sociedade fundada na troca entre capital e trabalho, na qual o trabalho não é apenas um meio de realização do ser humano, mas principalmente uma forma (no mais das vezes, a única forma) de subsistência física, o trabalhador – sem uma proteção minimamente adequada – será transformado em coisa (mercadoria) durante o tempo de trabalho.
Não é difícil perceber que essa é uma característica objetiva da relação social que se estabelece entre trabalho e capital.
O melhor empregado será sempre aquele que mais conseguir anular a sua condição humana enquanto trabalha: que não for tantas vezes ao banheiro, não adoecer, não conversar com os colegas, não manifestar queixas, não faltar ao trabalho; não comentar problemas pessoais. Aquele que render mais, que trabalhar de forma incessante, que evitar intervalos. E isso, é bom que se sublinhe, independe da bondade ou da maldade de qualquer dos sujeitos dessa relação. Trata-se de uma tendência natural da relação social de trabalho, que contraria o fundamento da modernidade: o respeito à dignidade e ao ideal de vida minimamente boa para todos.
O Direito opera no nível do discurso, da linguagem
Como instrumento de conservação da ordem (das coisas exatamente como elas estão) precisa reproduzir a promessa fundamental da modernidade, de que a dominação servil seria substituída pela igualdade e pela liberdade. Toda a retórica do discurso moderno fundamenta-se nessa promessa e por mais que ela seja mentirosa para a realidade da vida de muita gente, a sustentação do conjunto normativo, moral e burocrático em que se assenta o Estado pressupõe sua reprodução. Ocorre que defender liberdade e igualdade impede que se sustente, em uma tal sociedade, um tipo de relação social em que a condição humana seja tendencialmente anulada.
A iniciativa de Hegel, até hoje de certo modo reproduzida, de sustentar que somos proprietários de nossa força vital e que, por consequência, quando ingressamos numa relação de trabalho estamos expressando nossa liberdade e alienando nossa propriedade, não pode esconder o fato de que, como já dizia Marx, em regra o trabalhador ingressa apenas com a sua pele e não espera outra coisa da relação que firma com o capital, do que a própria despela.
Consequências
As consequências desse fato objetivo: a produção de miséria, de desemprego estrutural, a correspondente falta de consumo suficiente e a revolta organizada dos trabalhadores, gerou ao longo dos anos a necessidade da edição de regras que de algum modo minimizassem tal característica, sem contudo alterar a lógica da exploração. As regras trabalhistas foram criadas portanto, para impor alguns limites à tendência natural da relação de exploração do trabalho pelo capital, a fim de seguir sustentando, também para o trabalhador, a condição de “sujeito de direitos”. Mesmo que durante o contrato ele siga precisando comportar-se como mercadoria, os limites (de duração de trabalho, remuneração mínima, vedação de alterações lesivas; ambiente saudável, etc) servem para seguir convencendo-o de que também é destinatário da ordem jurídica, e tem, pois, sua humanidade preservada.
O princípio da proteção a quem trabalha, que determina a existência de regras trabalhistas, dá, portanto, a medida da exploração possível. Pois bem, se reconhecemos isso, precisamos também reconhecer que regras de conduta social emanadas pelo Estado só serão realmente normas jurídicas trabalhistas se estiverem fundamentadas na noção de proteção a quem trabalha e se concretizarem esse princípio. Trata-se de uma compreensão de princípio como o que está no início, o que justifica a edição de um determinado conjunto de regras de conduta social. Por consequência, uma regra que nega a proteção não adquire a condição de norma jurídica trabalhista.
É interessante observar que no caso do Direito do Trabalho, mesmo o discurso do capital reconhece a proteção que justifica sua existência.
O texto da Exposição de Motivos para a criação da Justiça do Trabalho, datado de 11 de novembro de 1936, por exemplo, refere textualmente que ela “justifica-se não só pela necessidade de harmonizar os interesses em luta, como em defesa da autoridade do Estado, que não pôde ser neutro, nem abstencionista, diante das perturbações coletivas, deixando as forças sociais entregues aos próprios impulsos”.
Reconhece a ausência de neutralidade em uma estrutura de poder criada para minimizar a assimetria objetiva presente na relação social do trabalho. Além disso, menciona que a função do Sindicato é “a luta para a conquista de um salario sempre mais elevado e de garantias que atenuem as desigualdades econômicas”, reforçando a compreensão presente no caput do art. 7o da Constituição da República, de que as normas coletivas só adquirem normatividade, qualificando-se como um direito fundamental do trabalhador, se efetivamente promoverem a melhoria de sua condição social, pois é exatamente essa a função dos sindicatos.
O documento refere, ainda, que a Justiça do Trabalho, como “instância conciliatória”, pode oferecer às partes “meios para entendimento, transigência e acordo, constituindo a arbitragem coercitiva instancia subsidiaria e ultima, por não ser possível fiquem os conflitos sem solução”, admitindo que a supressão dessa instância mediadora produz prejuízos de ordem social, impedindo que o próprio sistema siga se reproduzindo.
Reconhece que a questão social nos países capitalistas, “se caracteriza pela necessidade de redistribuição da riqueza acumulada”. E ainda explicita que no Brasil, a questão social se apresenta com aspectos diferentes, exigindo “augmento de riqueza, que só podemos atingir com a organização das nossas atividades produtoras”. Por isso, conclui que a função da Justiça do Trabalho é assegurar à classe trabalhadora “protecção capaz de assegurar os seus interesses em equilíbrio com os do patronato, subordinados todos aos imperativos de ordem colectiva“.
Ora, nada mais cristalino. A razão fundante do Direito do Trabalho, e da Justiça do Trabalho, é garantir proteção a quem trabalha. O texto ainda conclui que o “problema do trabalho não é unilateral, nem pôde ser resolvido com a sua regulamentação pura e simples. Demanda um esforço geral de organização e ordem, que atinja a todos os sectores da produção”.
É ainda importante observar que a Justiça do Trabalho, nesse documento, é apresentada como uma instituição pautada pelos seguintes princípios: “identidade de juiz – isto é, um só juiz preparador e julgador”; “processo oral”; “prova imediata, não havendo dilação”; “concentração processual, isto é, todos os incidentes e meios de prova são feitos em conjunto e, tanto quanto possível, na mesma audiência”; “instancia unica, quando possível, não havendo recurso das decisões, incidentes ou interlocutórias, e só se permitindo a apelação das sentenças definitivas com efeito suspensivo em casos restritos”; “gratuidade do processo até 1:000$000 (um conto de réis) e pagamento das custas somente afinal” e “execução, pela Justiça do Trabalho, das próprias decisões”.
Em realidade, não se trata de um rol de princípios, mas de decorrências da noção de proteção, que não podem ser suprimidas por uma lei ordinária, quando a ordem jurídica que legitimou tais afirmações não apenas sem mantém, mas foi reforçada pela lógica do texto constitucional, e por toda a doutrina que alça os direitos trabalhistas à condição de direitos fundamentais.
Proteção negada do início ao fim
Mesmo seus autores admitem que essa legislação foi editada com a finalidade de promover proteção ao tomador do trabalho. Logo, suas regras não são trabalhistas e, como tal, não podem ser aplicadas, sob pena de subverterem a ordem do sistema de proteção a quem trabalha, negarem a Constituição e, portanto, romperem com a historicidade que justifica a existência de um Direito do Trabalho e de uma Justiça do Trabalho.
Aliás, é por isso que todos aqueles que não acreditam na potencialidade da Justiça do Trabalho, em sua missão de fazer valer direitos trabalhistas, aproveitam-se hoje da aprovação dessa lei, para retomar o velho discurso de que a Justiça do Trabalho deve ser extinta.
Eles sabem que a aplicação de regras que negam proteção a quem trabalha promove a quebra do sistema, e apostam nessa quebra para colocar o Brasil de volta à posição que ocupava no século XIX. Ocorre que a Lei 13.467/17 não apenas é editada dentro de um conjunto sistemático de regras que precisam ser assim compreendidas (como partes de um sistema no qual a Constituição de 1988 apresenta-se como vetor), mas também cria regras para serem enxertadas na CLT, sem alterar suas normas gerais (tais como o art. 9o ou o 765). Portanto, como discurso jurídico, essa lei precisa ser compreendida a partir das normas já contidas na CLT e do que estabelece a Constituição de 1988. Onde uma tal interpretação não for possível, não será possível aplicá-la.
Lendo-a, não é difícil perceber que a maior parte de suas regras não resiste, realmente, ao exame de sua compatibilidade com a proteção que poderia torná-la norma jurídica trabalhista. As regras acerca da gratuidade, piores que aquelas inscritas no CPC, negam completamente a razão pela qual temos um processo do trabalho. A autorização para trabalhar 12h é contrária à norma constitucional que fixa o máximo do horário de trabalho em 8h e que está diretamente relacionada à manutenção da saúde física e mental de quem trabalha e de quem convive com o trabalhador.
A tarifação do dano moral, a previsão de multas, a possibilidade de punir trabalhador que compareça como testemunha, sem dar-lhe qualquer garantia de que se disser a verdade não perderá seu emprego; o trabalho intermitente; a tentativa de negar pagamento de horas extras para quem labora em regime de teletrabalho; a referência de que comissão não é salário; a autorização para contratar empregado como autônomo; a autorização para pagar menos do que o salário mínimo; a redução ou supressão dos tempos de descanso; a tentativa de eliminar os adicionais de salário por condições insalubres de trabalho; a fragilização da garantia que se constitui pelo depósito recursal; a tentativa de impedir a execução de ofício, e todas as demais alterações promovidas pela Lei 13.467/17 negam claramente a noção de proteção e as diretivas que justificaram a existência do Direito do Trabalho e da Justiça do Trabalho.
Por consequência, atraem a incidência da regra do art. 9o da CLT, que as torna nulas. Sob a perspectiva constitucional, negam caput e todo o conteúdo do artigo 7o da Constituição, sendo então inconstitucionais. Do ponto de vista da hermenêutica jurídica, negam a razão histórica pela qual o Direito do Trabalho reconhece fontes formais produzidas de modo autônomo, pelas partes.
A conclusão só pode ser a de que a Lei 13.467/17 não é uma lei trabalhista.
Suas regras, porque ferem a proteção que justifica e legitima a existência do Direito do Trabalho, são qualquer coisa, menos normas jurídicas trabalhistas. São o surto desesperado de meia dúzia de pessoas ligadas a um setor muito específico do capital, que não tem compromisso com o capitalismo produtivo, com os anseios sociais, com as plataformas de campanha ou mesmo com o pacto de sobrevivência do sistema, que firmamos em 1988. São um amontoado de disposições que assustam, seja pela atecnia, seja pela completa falta de compromisso com a área do Direito para a qual pretende se destinar.
Expressam um desejo de destruição que certamente será rechaçado por quem lida diariamente com essa relação social, por quem convive com trabalhadores que relatam situações de doença, assédio, desrespeito e descumprimento contumaz de direitos elementares, por todos aqueles que tem a missão institucional de seguir aplicando o Direito do Trabalho à luz de uma ordem de valores claramente estabelecida desde a gênese desse ramo do Direito, e fortalecida pela Constituição de 1988.
É, então, forçoso concluir que a Lei 13.467/17 não poderá ser aplicada. Ao contrário, deverá ser completamente rejeitada, expulsa – formal e materialmente – do ambiente jurídico do Direito do Trabalho, como uma célula cancerígena que se não for neutralizada e extirpada o quanto antes, poderá provocar a morte do corpo que habita.
Valdete Souto Severo é Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP; Diretora e Professora da FEMARGS Fundação Escola da Magistratura do Trabalho RS; Juíza do Trabalho; Membro da Associação Juízes para a Democracia AJD.
Fonte Justificando
Postado por Fernando Diegues em Artigos